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Reforma Tributária e PLP 108/2024 - O Toque de Midas Reverso

No dia 13/08/2024, foi aprovado pela Câmara dos Deputados o PLP 108/2024. Trata-se de um projeto de lei complementar de autoria do Poder Executivo, com 124 páginas e 197 artigos que modificam de forma substancial o direito tributário no país. Ele foi apresentado ao Congresso no dia 05/06/2024, em regime de tramitação de “urgência”, e aprovado em pouco mais de 60 dias. A mera aprovação de um projeto de lei complementar de direito tributário dessa complexidade, em um prazo tão exíguo, gera desconfiança. Quando constatamos que é um projeto de origem do governo, que contou com 303 votos favoráveis e apenas 142 contrários, sem modificações substanciais no seu conteúdo durante a tramitação no Legislativo, essa desconfiança só aumenta.

As mudanças tributárias em curso são tantas que os juristas do país sequer tiveram tempo hábil de produzir conteúdo sobre os pontos mais controversos. Com o propósito de contribuir para o esclarecimento da gravidade de algumas delas, o objeto de análise deste artigo é bem específico e pode ser definido como a transformação de negócios jurídicos não tributáveis em negócios tributáveis, por meio do “Toque de Midas Estatal”. O mito grego diz que o Rei Midas pediu ao deus Baco que tudo aquilo que ele tocasse virasse ouro, e o fez porque era ganancioso. De igual modo, temos visto o Estado fazer uso dos seus poderes para empobrecer os cidadãos e transformar tudo que ele toca em fatos tributáveis. É a sede inesgotável do Leviatã pela ampliação das fontes de receita, ainda que ao arrepio da lei e da Constituição.

Esse é o caso, por exemplo, do artigo 160 do PLP 108/2024 que trata do ITCMD (imposto de transmissão causa mortis e doação). Não contente com a definição da hipótese de incidência do tributo, o mesmo artigo prevê tudo aquilo que, muito embora não se enquadre no conceito da operação jurídica de doação, será considerado como tal (artigo 160, §3º, §4º e §5º), simplesmente pela vontade do Estado. Uma dessas novas fontes é a distribuição desproporcional de dividendos entre pessoas vinculadas. O que são as pessoas vinculadas? O conceito está no §6º e é amplíssimo, destinado a abarcar todos os laços de parentesco possíveis.

Antes de avançar, é importante compreender que a distribuição de lucros ou dividendos é ato jurídico específico, um instituto de direito privado que nasce com a decisão da empresa de repartir entre os sócios os lucros obtidos com sua atividade comercial. Essa operação jurídica possui embasamento legal no artigo 1.007 do Código Civil de 2002, e o mesmo artigo autoriza a distribuição desproporcional se assim decidirem os sócios, em razão do princípio da autonomia da vontade e da liberdade contratual. Ressalta-se que esses princípios foram fortalecidos após a edição da Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019). Incrível, não? A lei diz que os sócios têm liberdade de decidir como irão lidar com os negócios da sua empresa, inclusive como querem distribuir os lucros. Deveria ser assim em qualquer país que dê um mínimo de autonomia para as relações privadas. As razões para que uma sociedade decida realizar distribuição desproporcional de lucros são inúmeras, e muitas vezes baseadas em questões estratégicas, operacionais e tributárias de interesse particular dos sócios.

O Código Tributário Nacional, por sua vez, afirma no artigo 110:

Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.

A lei indica um limite muito claro ao Estado no seu poder de tributar, justamente para impedir que as normas tributárias, no afã de alcançar o maior número de hipóteses de arrecadação possíveis, extrapolem a função constitucional de prescrever fatos geradores de impostos e passem a invadir a competência de outras áreas do direito, como por exemplo os institutos, conceitos e formas de direito privado. Ainda que o artigo 110 do CTN deixasse de existir, é evidente que normas tributárias não podem ultrapassar seu estrito limite de identificar um fato gerador de imposto, prever a alíquota, o sujeito ativo e o sujeito passivo.

Entretanto, o governo, em seu Projeto de Lei Complementar, modificou um instituto de direito privado já consolidado pela lei, jurisprudência e doutrina, para transformá-lo em uma espécie de doação presumida, que imputa o ônus da prova da validade do negócio ao cidadão. Diz o artigo 160, §5º, I:

[...]

§ 5º Consideram-se, ainda, como doações, para fins da incidência do ITCMD, em transmissões entre pessoas vinculadas:

I - os atos societários que resultem em benefícios desproporcionais para sócio ou acionista praticados por liberalidade e sem justificativa negocial passível de comprovação, incluindo distribuição desproporcional de dividendos, cisão desproporcional e aumento ou redução de capital a preços diferenciados; e 

[...]

O trecho da lei acima citado presume que a distribuição de lucros ou dividendos desproporcionais entre pessoas vinculadas é uma doação, cabendo ao cidadão e à empresa o ônus de provar o contrário. Quando essas provas devem ser apresentadas? Quando o fisco resolver questionar a validade do negócio.

Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que 90% das sociedades limitadas do país têm perfil familiar (veja aqui e aqui), conforme pesquisas patrocinadas pelo Estado brasileiro via IBGE. Essas empresas são responsáveis por 75% dos empregos do país e 65% do PIB nacional. Em síntese, o governo tem plena ciência de que pessoas vinculadas por laços de sangue em empresas familiares representam a esmagadora maioria das sociedades limitadas. Diante desse fato, a pretensão de presumir tributável por ITCMD a distribuição desproporcional de lucros significa esvaziar o sentido da previsão do artigo 1.007 do Código Civil de 2002 de forma indireta, por meio de norma tributária, o que é vedado pela razão, lógica e também pelo artigo 110 do Código Tributário Nacional. Cria-se enorme insegurança jurídica em um ato legítimo, apenas pela vontade de arrecadar mais.

Os fiscais vibram com esse tipo de alteração legislativa e não compreendem o alcance das mudanças. Não está sobre os seus ombros a obrigação de trazer orientação legal preventiva aos empresários; sua missão é apenas encontrar mais tributo para arrecadar. O cidadão é acuado, sua liberdade de contratar torna-se mais escassa e a atividade empresarial mais insegura com o surgimento de um novo elemento de instabilidade.

Em segundo lugar, o projeto de lei cria uma brecha perigosa para que o Estado passe a questionar operações societárias que são lícitas e decorrem de uma escolha dos sócios baseadas no artigo 1.007 do Código Civil. Se o fisco receberá o poder de presumir a doação em operações societárias quando presentes pessoas vinculadas por laços de sangue, nada impede que depois avance para presumir a doação na distribuição de lucros desproporcional para terceiros com base na mera presença do affectio societatis. Nada impede que seja dada interpretação elástica para a justificativa negocial passível de comprovação mencionada na lei, com a finalidade de tornar as provas sempre insuficientes e lançar o tributo de qualquer jeito.

Nesse contexto de puro arbítrio, o Toque de Midas Reverso é a transformação de tudo o que o Estado quer em tributo presumido. Ao invés de fomentar a atividade empresarial, busca-se a perpetuação da pobreza. No mito grego, Midas se arrepende do “dom” recebido ao perceber a consequência dos seus atos. Será que o Estado vai se arrepender? No atual cenário jurídico do país não podemos contar com tamanha sorte.

É imperativo, portanto, que tais trechos do PLP108/2024 sejam excluídos pelo Senado, sob pena de grande prejuízo à atividade empresarial das famílias e à segurança jurídica, tão necessária em nossos dias.

 

CICERO ANTONIO FAVARETTO, advogado especialista em direito tributário, OAB/SC nº28.059.