Antes de se indignar contra uma injustiça é necessário identificar a sua existência. Aquilo que é percebido como normal não trará questionamentos. Quando ingressamos na seara dos impostos é ainda mais difícil que os cidadãos notem a injustiça, porque sequer entendem o funcionamento do sistema. Há uma infinidade de leis, regulamentos, portarias e regras que tornam tudo muito difícil e incompreensível, ao mesmo tempo que criam uma aparência de legitimidade para a atuação estatal.
Para que o cidadão continue entorpecido enquanto é assaltado, criou-se no subconsciente coletivo um raciocínio simplista de que pagar impostos é cumprir a lei; aqueles que a descumprem são os sonegadores que devem arcar com as consequências do seu mau comportamento. Entretanto, a verdade está muito distante dessa simplificação. O objetivo desta série de artigos é demonstrar como o governo faz uso de artimanhas que sujeitam o cidadão a uma contínua perda patrimonial, sem que as pessoas tenham consciência desse fato, e, por conseguinte, sem que haja resistência.
Em uma estrutura tributária saudável busca-se igualdade de tratamento entre o Estado e seus cidadãos, visto que ambos colaboram para o bem comum da sociedade. Já em um estrutura doentia, ocorre o contrário disso. O Estado cria leis, modifica a sua interpretação ou se omite quando conveniente, tudo para benefício próprio.
Um exemplo claro dessa forma de proceder diz respeito ao índice de correção monetária adotado em condenações judiciais contra o Estado. Há 15 anos foi inserido na lei o artigo 1º-F da Lei nº 11.960/2009, que, sob o pretexto de uniformizar os índices de correção monetária, adotou dois pesos e duas medidas: um índice de correção monetária mais vantajoso para o Estado quando ele estivesse na posição de credor e menos vantajoso para os cidadãos cobrarem as dívidas do Estado.
A correção monetária é um índice que serve para recompor o valor da moeda depreciado pela inflação. A inflação, por sua vez, é a corrosão do valor da moeda no curso do tempo, e, pode ser resumido como a perda do poder de compra daquela unidade monetária. Os índices geralmente utilizados para correção monetária no Brasil são o INPC (índice nacional de preços ao consumidor) e o IPCA (índice nacional de preços ao consumidor amplo). O primeiro mede a variação dos preços de produtos e serviços consumidos pelas famílias brasileiras com renda entre 1 e 5 salários mínimos, ao passo que o IPCA mede essa variação nas famílias com renda entre 1 e 40 salários mínimos.
No caso do artigo de lei mencionado acima, ele determinou que a correção monetária das dívidas públicas, ou seja, de condenações dos Estados em favor dos cidadãos (os famosos precatórios, por exemplo) seria feita pela Taxa TR, muito utilizada na poupança; essa taxa é, no entanto, incapaz de recompor o valor da moeda. Segundo a citada lei, esse índice seria aplicável sempre que um cidadão fosse credor do Estado. Quando o Estado fosse o credor, o índice de correção monetária seria outro, mais vantajoso. Referida regra escancarou o propósito de calcular os créditos estatais de forma diferente dos seus débitos, e, trouxe aos cofres públicos uma quantia considerável durante o período de vigência de 2009 à 2017. Foi apenas em 20/09/2017 que o STF declarou a inconstitucionalidade parcial da utilização desse índice no julgamento do RE 87094711 de relatoria do Ministro Luiz Fux. Na decisão foi dito aquilo que já era óbvio: que a taxa TR violava o direito fundamental de propriedade dos cidadãos, e, que o mesmo índice utilizado pelo governo quando ele é credor também deveria ser utilizado quando ele é devedor. Eureka!
Não é preciso dizer que muitos cidadãos que tinham processos cobrando dívidaas do Estado já sabiam disso desde 2009, quando essa lei foi publicada. Tanto sabiam que milhares de recursos foram propostos com a mesma discussão, de um lado o Estado defendendo a aplicação do artigo 1º-F da Lei nº 11.960/2009 que lhe favorecia, e, de outro, os cidadãos protestando que a lei era inconstitucional e que seu cálculo sempre atingia um valor menor que o devido.
É curioso notar que não há registro de uma lei em sentido oposto, ou seja, que fizesse uso de um critério melhor de cálculo para o cidadão e pior para o Estado. Por algum motivo o Congresso Nacional nunca cometeu esse desatino no processo legislativo. E, ainda que fosse editada uma lei desse tipo, dificilmente ela teria vigorado tanto tempo.
Esse é apenas uma das formas que o Estado utiliza para incrementar os cofres públicos: a publicação de leis inconstitucionais que modificam o critério de correção monetária, para trazer aparência de legalidade em atos de expropriação contra os cidadãos que o governo alega proteger.
CICERO ANTONIO FAVARETTO é advogado especialista em direito tributário.
OAB/SC nº28.059
1 https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur377779/false
https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=810